Alguns Pontos Preliminares de Referência
[Texto dos Cadernos do cárcere]
António Gramsci
Posterior a 1931
Fonte: Algunos puntos preliminares de referencia, na antologia preparada e traduzida por J. Solé-Tura: Introducción a la filosofía de la praxis, Ediciones Península, Barcelona, 1972, págs. 11-15.
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil polo facto de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. Portanto, deve-se demonstrar preliminarmente, que todos os homens são «filósofos», definindo os limites e as características desta «filosofia espontânea» peculiar a «todo o mundo», isto é, da filosofia que está contida:
a) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não só de palavras gramaticamente vazias de conteúdo;
b) no senso comum e no bom-senso;
c) na religião popular e, conseqüentemente, em todo o sistema de crenças, de superstições, de opiniões, de modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que se conhece geralmente por «folclore».
Após ter demonstrado que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente porque, na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, a «linguagem», contem-se já uma determinada concepção de mundo, passemos ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, isto é, ao problema de se é preferível «pensar» sem disto ter consciência crítica, isto é, «participar» de uma concepção de mundo «imposta» mecanicamente polo ambiente exterior, e portanto, por um dos grupos sociais nos quais todos estamos automaticamente envolvidos desde a nossa entrada no mundo consciente (que pode ser a própria aldeia onde residimos ou a província, que pode se originar na paróquia e na «atividade intelectual» do cura ou do velho patriarca, que dita leis com a sua «sabedoria», na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pola própria estupidez e a sua impotência para a acção) ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo consciente e criticamente e, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de actividade, participar activamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não aceitar do exterior, passiva e servilmente, que a marca da nossa personalidade venha formada de fora.
Nota I. Pola própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, e de maneira concreta, de todos os elementos sociais que partilham de um mesmo modo de pensar e agir. Sempre somos conformistas de algum conformismo, sempre somos homens-massa ou homens-coletivos. A qüestão é a seguinte: qual é o tipo histórico do conformismo, do homem-massa do qual se faz parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa; a própria personalidade é composta de maneira bizarra e heterogénea: encontram-se nela elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localistas e intuições de uma filosofia futura que será do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção de mundo significa, portanto, torná-la unitária e coerente, elevá-la até o ponto atingido polo pensamento mundial mais elevado. Significa, também, criticar toda filosofia existente até hoje, na medida em que deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que realmente somos, isto é, um «conhece-te a ti mesmo» como produto do processo histórico desenvolvido até hoje, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício no inventário. Tem-se de iniciar, este inventário.
NOTA II. Não se pode separar a filosofia da História da Filosofia, nem a cultura da História da Cultura. No sentido mais imediato e determinado, não se pode ser filósofo, isto é, não se pode ter uma concepção do mundo criticamente coerente, sem a consciência da historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada e do facto de que está em contradição com outras concepções ou com elementos de outras concepções. A própria concepção do mundo responde a determinados problemas colocados pola realidade, que são bem determinados e «originais» na sua atualidade. Como se pode pensar o presente, e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado por problemas de um passado às vezes remoto e superado? Se isto acontece quer dizer que nós somos «anacrônicos» na própria época em que vivemos, que somos fosseis e não seres modernos. Ou, polo menos, somos seres «compostos» heterogéneos e bizarros. Há grupos sociais, de facto, que, em determinados aspectos, exprimem a modernidade mais desenvolvida e em outros manifestam-se atrasados com relação à sua própria posição social, sendo incapazes, portanto, de agir com completa autonomia histórica.
NOTA III. Se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção do mundo e também de uma cultura, será verdade igualmente que, a partir da linguagem de cada um, se pode julgar da maior ou menor complexidade da sua concepção do mundo. O homem que somente fala um dialecto ou apenas compreende a língua nacional em graus diversos, participa necessariamente de uma intuição do mundo mais ou menos restrita e provinciana, fossilizada, anacrônica em relação às grandes correntes de pensamento que dominam a história mundial. Os seus interesses serão restritos, mais ou menos corporativos ou economicistas, não universais. Se nem sempre é possível adquirir conhecimento de outros idiomas estrangeiros a fim de colocar-se em contato com diversas vidas culturais, deve-se polo menos conhecer bem a língua nacional. Uma grande cultura pode traduzir-se na língua de outra grande cultura, isto é, uma grande língua nacional historicamente rica e complexa pode traduzir qualquer outra grande cultura, ser uma expressão mundial. Mas, com um dialeto, não é possível.
NOTA IV. Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas «originais»; significa, sobretudo, difundir também criticamente verdades já descobertas, «socializá-las», por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. Conduzir uma massa de homens a pensar com coerência e de modo unitário o pressente é um facto «filosófico» muito mais importante e «original» que a descoberta por um «génio» filosófico de uma nova verdade que se converte em património único de pequenos intelectuais.